Do meu pai
resta pouca coisa, por que coisas são apenas coisas que não permanecem mesmo. Até
minhas lembranças são diluídas, difusas e minha saudade me engabela.
Eu ainda
costumo fingir (mesmo depois de mais de dez anos), que qualquer hora eu vou lá
em casa para “levar um lero” com meu velho e contar as novidades. É que ainda
não deu tempo...
Tempo...
De meu pai,
me resta quase nada a não ser tudo o que sou.
De meu pai
não resta nada a não ser tudo.
Quem eu
sou.
Eu sou sua
paixão pelo conhecimento, pela música, pela poesia, pelos livros, pela arquitetura, pelos filmes, e obviamente pelo humor.
Eu sou também
seus sonhos abatidos, sua desilusão e sua vontade de ir embora, de voltar para
casa, onde quer que ela seja.
Esse tal de “dia dos pais” me é especialmente doloroso, pois quase sempre coincide com a
data de sua partida.
Esforço-me para
lembrar fatos da nossa vida, mas eu só me recordo de detalhes...
Lembro-me
das suas mãos, enquanto escrevia seus textos, crônicas, livros, antes de datilografar. Páginas e
páginas escritas com caneta “Bic” azul sobre papel almaço.
Você tinha uma
caligrafia bela e homogenia e o conteúdo vinha quase terminado, sem necessidade de
grandes reparos. Então, quando terminava o texto, relia e trocava uma ou outra palavra,
acertava um acento e pronto!
Nada de
“copiar/colar”, nem de buscar sinônimos no “world”. Nada de “deletar”. Tudo
isso era trançado em sua prodigiosa e criativa mente, antes de transcrever a caneta,
e finalmente datilografar.
Lembro-me
das suas mãos, pai. Do formato das unhas e dos dedos.
Outro dia
eu vi sua mão nas mãos da minha irmã. Emocionei-me. Eram iguais. Já as
minhas se parecem com as mãos da mamãe.
Eu consigo
me lembrar muito bem dos seus olhos azuis, tão lindos. Mas, mais que dos olhos,
eu me lembro do seu olhar amoroso. O seu olhar também era azul, pai.
Azul
intenso e brilhante, como o céu, como o mar, como Deus.
Lembro-me das
suas sobrancelhas que embranqueceram e ficaram rebeldes conforme foi
envelhecendo. Eu teimava em domá-las. Queria cortar, pentear, ao que você
recusava veemente. Sei que não era por rabugice sua, apenas já não se importava
mais com algumas coisas que para mim ainda eram relevantes.
Queria
mantê-lo bonito, como se por algum instante tivesse deixado de sê-lo. Tão boba,
eu...
Não quero
me estender por aqui, pai, porque o que tivemos em vida é coisa grande demais
para virar palavrório desprovido de significado.
É que
escrevendo, é o único jeito que encontro de dizer - mais ou menos - o quanto
sinto sua falta.
Queria
aproveitar a ocasião para confessar que fiquei muito consternada quando você partiu. Achei que era muito cedo e fiquei ressentida achando que você desistiu da vida e de
nós, e como eu o considerava dos mais sábios homens que conheci, comecei a cogitar que talvez a vida não valesse a pena ser
vivida mesmo.
Pensei em
desistir também.
Mas então
pai, eu olhei para a minha filha, sua neta, e pensei que se eu juntasse a
metade dela que sou eu, com a metade de mim que é você, teríamos uma misturinha
boa, pela qual valia a pena viver.
E sabe de
uma coisa, pai?
Deu certo.
Ela não
herdou a cor dos seus olhos, mas ela tem o seu olhar intensamente azulado para
o mundo.
Ela ama a música
e o teatro como você amava. E a dança...
Lembro que
você adorava aqueles musicais antigos e queria que eu assistisse junto. Eu
sempre arrumava uma desculpa por falta de tempo e/ou boa vontade: “O barco das
ilusões”, “Cantando na chuva” “A noviça rebelde”, “Jailhouse Rock” que era seu preferido, entre tantas
outras maravilhas que você gostava tanto.
Pois minha
filha, gosta de assistir esses filmes desde pequena, entre outros da geração
dela. Com ela eu assisti e adorei. Quanto tempo eu perdi...
Você foi,
mas deixou sua parcela em cada um de nós.
Reflito que
se são as lembranças artificiosas, o que restou de você em mim?
Restou o
que aprendi!
Restou seu
amor incondicional por todas as artes. Restou-me a consciência de que a Arte é
nossa redenção. A arte é a loucura que nos mantém sãos: a música, o teatro, a
literatura, a pintura, a arquitetura, a dança, e todas as maravilhosas formas
de expressão humana, que faz de nós um pouco mais sagrados e divinos e menos
animais.
Entretanto,
a mais importante lição de vida que me deixou, pai, foi a de dar sempre o melhor de
si em tudo o que se propunha. Tudo sempre bem feito, se dedicando com corpo e
alma e da melhor forma possível, por menor que fosse.
Você sempre
cuidou com tanto carinho dos detalhes e das pequeninas coisas que as tornava
perfeitas. Assim o produto final de tudo o que fazia transformava-se em arte.
Esse é você,
meu pai e o seu “resto” é muito mais do que eu poderia juntar de mim mesma a
vida inteira.
Sou grata
pelo tempo que o generoso Universo me consentiu passar ao seu lado.
Você foi
perfeito e brilhantemente azul.
11 comentários:
Rossana, lindo texto, tão profundo, e tão intenso...... bjs Adriana T
Un texto profundo, siempre recordaremos los buenos consejos del padre.
que tengas un buen dia.
saludos.
Estou às lágrimas por uma emoção genuína e pela compreensão desse amor incondicional a que se refere. Conheço essa saudade e ela permeia meus dias.
Li outros textos seus e me identifiquei muito com vc.
Sigo junto.
Beijo.
Emocionante. Vimuito da minha história. Quando o meu se foi, achei que o havia perdido. Quando comecei a olhar-me mais cuidadosamente, descobri que não o perdi. Eu era ele. Ele continuava muito em mim. Talvez por isso eu sempre use o verbo no presente: eu AMO muito meu pai. Ele existe ainda.
Beijos,
E seu texto é tão azul quanto!...
De emocionar...
Beijos =)
Alguns pais têm o dom de fazer filhos inteiros como você.
Belíssimo texto.
Beijoss
Que lindo,Rossana
Nao poderia ser diferente,vindo de quem veio
Lindo e emocionante.
Tenho certeza que de onde ele estiver, estará contente com tamanha homenagem =)
Bjos
Me emocionei, também já perdi meu pai,
apenas para este espaço material,por que ele continua em mim em meus filhos(Bendito DNA).Lago das minhas lágrimas órfãs.
Um abraço.
Como bem sabes, Rossana, do azul nasce o verde. Ou se preferires, para o azul se ergue o verde, como se o soubesse desde tempos antigos pela orientação das aves. Ou das árvores. Quem mais, senão para elas e certas crianças o sol é todo o seu mar? Aquelas crianças que esperam pelo regresso do pai ao fim do dia, todos os dias?
É bom sabermos sempre como regressar para onde está o nosso pai. O nosso pai "perfeito e brilhantemente azul". Que os nossos olhos verdes miraram pela primeira vez numa manhã clara de primavera.
Beijo terno.
Lindo! Lindo! Lindo... Chorante como eu sou. Estou aqui envolvendo-me em lágrimas. Lágrimas brilhantes pela POESIA tua!
beijos sonoro
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