sábado, 11 de agosto de 2012

Restos de pai



Do meu pai resta pouca coisa, por que coisas são apenas coisas que não permanecem mesmo. Até minhas lembranças são diluídas, difusas e minha saudade me engabela.
Eu ainda costumo fingir (mesmo depois de mais de dez anos), que qualquer hora eu vou lá em casa para “levar um lero” com meu velho e contar as novidades. É que ainda não deu tempo...
Tempo...
De meu pai, me resta quase nada a não ser tudo o que sou.
De meu pai não resta nada a não ser tudo.
Quem eu sou.
Eu sou sua paixão pelo conhecimento, pela música, pela poesia, pelos livros, pela arquitetura, pelos filmes, e obviamente pelo humor.
Eu sou também seus sonhos abatidos, sua desilusão e sua vontade de ir embora, de voltar para casa, onde quer que ela seja.
Esse tal de “dia dos pais” me é especialmente doloroso, pois quase sempre coincide com a data de sua partida.
Esforço-me para lembrar fatos da nossa vida, mas eu só me recordo de detalhes...
Lembro-me das suas mãos, enquanto escrevia seus textos, crônicas, livros, antes de datilografar. Páginas e páginas escritas com caneta “Bic” azul sobre papel almaço. 
Você tinha uma caligrafia bela e homogenia e o conteúdo vinha quase terminado, sem necessidade de grandes reparos. Então, quando terminava o texto, relia e trocava uma ou outra palavra, acertava um acento e pronto!
Nada de “copiar/colar”, nem de buscar sinônimos no “world”. Nada de “deletar”. Tudo isso era trançado em sua prodigiosa e criativa mente, antes de transcrever a caneta, e finalmente datilografar.
Lembro-me das suas mãos, pai. Do formato das unhas e dos dedos.
Outro dia eu vi sua mão nas mãos da minha irmã. Emocionei-me. Eram iguais. Já as minhas se parecem com as mãos da mamãe. 
Eu consigo me lembrar muito bem dos seus olhos azuis, tão lindos. Mas, mais que dos olhos, eu me lembro do seu olhar amoroso. O seu olhar também era azul, pai.
Azul intenso e brilhante, como o céu, como o mar, como Deus.
Lembro-me das suas sobrancelhas que embranqueceram e ficaram rebeldes conforme foi envelhecendo. Eu teimava em domá-las. Queria cortar, pentear, ao que você recusava veemente. Sei que não era por rabugice sua, apenas já não se importava mais com algumas coisas que para mim ainda eram relevantes.
Queria mantê-lo bonito, como se por algum instante tivesse deixado de sê-lo. Tão boba, eu...
Não quero me estender por aqui, pai, porque o que tivemos em vida é coisa grande demais para virar palavrório desprovido de significado.
É que escrevendo, é o único jeito que encontro de dizer - mais ou menos - o quanto sinto sua falta.
Queria aproveitar a ocasião para confessar que fiquei muito consternada quando você partiu. Achei que era muito cedo e fiquei ressentida achando que você desistiu da vida e de nós, e como eu o considerava dos mais sábios homens que conheci, comecei a cogitar que talvez a vida não valesse a pena ser vivida mesmo.
Pensei em desistir também.
Mas então pai, eu olhei para a minha filha, sua neta, e pensei que se eu juntasse a metade dela que sou eu, com a metade de mim que é você, teríamos uma misturinha boa, pela qual valia a pena viver.
E sabe de uma coisa, pai?  
Deu certo.
Ela não herdou a cor dos seus olhos, mas ela tem o seu olhar intensamente azulado para o mundo.
Ela ama a música e o teatro como você amava. E a dança...
Lembro que você adorava aqueles musicais antigos e queria que eu assistisse junto. Eu sempre arrumava uma desculpa por falta de tempo e/ou boa vontade: “O barco das ilusões”, “Cantando na chuva” “A noviça rebelde”, “Jailhouse Rock” que era seu preferido, entre tantas outras maravilhas que você gostava tanto.
Pois minha filha, gosta de assistir esses filmes desde pequena, entre outros da geração dela. Com ela eu assisti e adorei. Quanto tempo eu perdi...
Você foi, mas deixou sua parcela em cada um de nós.
Reflito que se são as lembranças artificiosas, o que restou de você em mim?
Restou o que aprendi!
Restou seu amor incondicional por todas as artes. Restou-me a consciência de que a Arte é nossa redenção. A arte é a loucura que nos mantém sãos: a música, o teatro, a literatura, a pintura, a arquitetura, a dança, e todas as maravilhosas formas de expressão humana, que faz de nós um pouco mais sagrados e divinos e menos animais.
Entretanto, a mais importante lição de vida que me deixou, pai, foi a de dar sempre o melhor de si em tudo o que se propunha. Tudo sempre bem feito, se dedicando com corpo e alma e da melhor forma possível, por menor que fosse.
Você sempre cuidou com tanto carinho dos detalhes e das pequeninas coisas que as tornava perfeitas. Assim o produto final de tudo o que fazia transformava-se em arte.
Esse é você, meu pai e o seu “resto” é muito mais do que eu poderia juntar de mim mesma a vida inteira.
Sou grata pelo tempo que o generoso Universo me consentiu passar ao seu lado.
Você foi perfeito e brilhantemente azul.

11 comentários:

Anônimo disse...

Rossana, lindo texto, tão profundo, e tão intenso...... bjs Adriana T

Ricardo Miñana disse...

Un texto profundo, siempre recordaremos los buenos consejos del padre.
que tengas un buen dia.
saludos.

Unknown disse...

Estou às lágrimas por uma emoção genuína e pela compreensão desse amor incondicional a que se refere. Conheço essa saudade e ela permeia meus dias.
Li outros textos seus e me identifiquei muito com vc.
Sigo junto.
Beijo.

Tania regina Contreiras disse...

Emocionante. Vimuito da minha história. Quando o meu se foi, achei que o havia perdido. Quando comecei a olhar-me mais cuidadosamente, descobri que não o perdi. Eu era ele. Ele continuava muito em mim. Talvez por isso eu sempre use o verbo no presente: eu AMO muito meu pai. Ele existe ainda.

Beijos,

Nadine Granad disse...

E seu texto é tão azul quanto!...

De emocionar...

Beijos =)

Bípede Falante disse...

Alguns pais têm o dom de fazer filhos inteiros como você.
Belíssimo texto.
Beijoss

Anônimo disse...

Que lindo,Rossana
Nao poderia ser diferente,vindo de quem veio

Mateus Medina disse...

Lindo e emocionante.

Tenho certeza que de onde ele estiver, estará contente com tamanha homenagem =)

Bjos

Lourdinha Vilela disse...

Me emocionei, também já perdi meu pai,
apenas para este espaço material,por que ele continua em mim em meus filhos(Bendito DNA).Lago das minhas lágrimas órfãs.
Um abraço.

Mário Lopes disse...

Como bem sabes, Rossana, do azul nasce o verde. Ou se preferires, para o azul se ergue o verde, como se o soubesse desde tempos antigos pela orientação das aves. Ou das árvores. Quem mais, senão para elas e certas crianças o sol é todo o seu mar? Aquelas crianças que esperam pelo regresso do pai ao fim do dia, todos os dias?
É bom sabermos sempre como regressar para onde está o nosso pai. O nosso pai "perfeito e brilhantemente azul". Que os nossos olhos verdes miraram pela primeira vez numa manhã clara de primavera.

Beijo terno.

Zenilda Lua disse...

Lindo! Lindo! Lindo... Chorante como eu sou. Estou aqui envolvendo-me em lágrimas. Lágrimas brilhantes pela POESIA tua!
beijos sonoro