Careço de memória sensorial dos meus tempos mais antigos, que me façam lembrar como eram meus dias de criança. Alguns fatos isolados eu me recordo bem, mas não consigo precisar como eu me sentia na pré-adolescência, para poder orientar melhor a minha filha de doze anos.
Não me ocorre agora, observando a sua angústia por conta da rotina diária, ter sentido algo semelhante nessa idade. De fato, lembro de sentir-me assim, talvez algum tempo depois, aos dezesseis ou dezoito anos. A partir daí, ficou evidente que a necessidade do inesperado e a ansiedade passariam a me enfeitar a alma como um colar de lindas flores e dolorosos espinhos.
Talvez, seja ela uma adolescente precoce.
Talvez tenha sido eu, uma menina que se demorou em crescer de propósito, numa tentativa intuitiva de se proteger dessa inquietude que persiste até hoje. Não é uma sensação boa.
Como auxiliar uma menininha que tem tudo, e sente-se sozinha?
Tento ser conivente, mas quando as menininhas começam a crescer, cresce com elas uma hostilidade gratuita contra tudo o que representa autoridade.
Sei que ela anseia por gente. Gente da sua idade. Sente falta de amigos que só existem na escola.
Nisso eu era bem diferente, lembro-me bem.
Fui criada num bairro onde brincávamos nas ruas, e que tinha tantas crianças quanto meu pé de limão Taiti tem de frutos. Dezenas de meninos e meninas barulhentos, vivendo a vida no entremeio entre fases como deveria ser vivida: Um pé no flerte sutil e sem perigo com o sexo oposto e outro pé nas brincadeiras inocentes de criança.
Viver não era tão perigoso. De qualquer maneira, moro numa casa onde as ruas são seguras e minha filha poderia brincar a vontade, mas não tem com quem. Não existem crianças por perto e se existem não imagino onde estejam. Talvez no computador, ou vendo televisão...
Quando ela recebe as amiguinhas em casa seu estado é de quase êxtase. Uma euforia que sai dos limites. É uma alegria extrema que quando passa, deixa nela uma espécie de ressaca.
Tentei conversar francamente. Pedi que me explicasse o que sentia e suas palavras literalmente foram: - Eu não agüento mais ficar aqui enquanto a vida está passando. Eu quero fazer um montão coisas. Nada acontece de legal e diferente na minha vida.
Fiquei perplexa sem saber o que dizer e sem compreender direito o que é esse “montão de coisas” que ela quer fazer.
Fingi que sabia e tentei explicar que me sinto assim às vezes, ao que ela contra argumentou que sou adulta e livre. - Mãe, você pode fazer tudo o que quiser! Você pode pegar um avião e ir aonde desejar. O que sabe ela sobre liberdade?
Eu ignorei essa alegação despropositada e retornei ao assunto dos seus sentimentos, Expliquei que além dela e de mim, muita gente se sente assim, e que (apesar de desencorajador), essa sensação não passa com o tempo. É preciso aprender a lidar com isso.
Discorri que momentos de grande alegria são especiais e, portanto raros, assim como os de grandes tristezas, e que a estabilidade da rotina não é assim tão ruim. Ao menos significa que está tudo bem, tudo caminhando como deveria.
Ela ficou decepcionada, obviamente. Sua expectativa era de que a vida fosse uma festa eterna e cheia de alegria, onde não existem deveres, só e apenas prazeres. Quem de nós não gostaria?
Ela disse que queria fugir para a Escócia. - A Escócia é bem longe daqui, justificou.
Essa resposta me fez pensar em mim e no pouco que aprendi nessa minha vida, mas lhe disse com convicção que ninguém consegue fugir de si mesmo. Ela poderia ir para onde quisesse, mas só se sentira bem se descobrisse a “Escócia” dentro de si.
Isso arrancou dela uma imensa gargalhada, o que inesperadamente dissipou sua angústia. - Mãe você devia escrever um livro com esse nome: “Encontre sua Escócia dentro de você!”.
Mais alentada, aproveitei para dizer que sua “Escócia” tem muitos outros nomes e que muitos sonham com um lugar de ser feliz.
Falei de Utopia, Shangri-Lá e claro, de Pasárgada. Fiz questão de ler o poema para ela.
Não sei se ela compreendeu tudo. Perguntou-me o que eram “alcalóides”. Parece que o resto ela já sabia, e no mais, se surpreendeu ao perceber que até Manoel Bandeira queria um refúgio feliz. Intuiu ao menos que não está sozinha em sua aflição.
Em sua meninice espaventada, já saiu tagarelando e cantarolando feliz, como se nada tivesse acontecido. Toda sua “crise existencial” se foi assim num estalar de dedos, enquanto eu fiquei ali pensativa e melancólica.
Como é difícil proteger-se da dor de viver.
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