quarta-feira, 17 de março de 2010

A Escócia dentro de você...


Careço de memória sensorial dos meus tempos mais antigos, que me façam lembrar como eram meus dias de criança. Alguns fatos isolados eu me recordo bem, mas não consigo precisar como eu me sentia na pré-adolescência, para poder orientar melhor a minha filha de doze anos.

Não me ocorre agora, observando a sua angústia por conta da rotina diária, ter sentido algo semelhante nessa idade. De fato, lembro de sentir-me assim, talvez algum tempo depois, aos dezesseis ou dezoito anos. A partir daí, ficou evidente que a necessidade do inesperado e a ansiedade passariam a me enfeitar a alma como um colar de lindas flores e dolorosos espinhos.

Talvez, seja ela uma adolescente precoce.

Talvez tenha sido eu, uma menina que se demorou em crescer de propósito, numa tentativa intuitiva de se proteger dessa inquietude que persiste até hoje. Não é uma sensação boa.

Como auxiliar uma menininha que tem tudo, e sente-se sozinha?

Tento ser conivente, mas quando as menininhas começam a crescer, cresce com elas uma hostilidade gratuita contra tudo o que representa autoridade.

Sei que ela anseia por gente. Gente da sua idade. Sente falta de amigos que só existem na escola.

Nisso eu era bem diferente, lembro-me bem.

Fui criada num bairro onde brincávamos nas ruas, e que tinha tantas crianças quanto meu pé de limão Taiti tem de frutos. Dezenas de meninos e meninas barulhentos, vivendo a vida no entremeio entre fases como deveria ser vivida: Um pé no flerte sutil e sem perigo com o sexo oposto e outro pé nas brincadeiras inocentes de criança.

Viver não era tão perigoso. De qualquer maneira, moro numa casa onde as ruas são seguras e minha filha poderia brincar a vontade, mas não tem com quem. Não existem crianças por perto e se existem não imagino onde estejam. Talvez no computador, ou vendo televisão...

Quando ela recebe as amiguinhas em casa seu estado é de quase êxtase. Uma euforia que sai dos limites. É uma alegria extrema que quando passa, deixa nela uma espécie de ressaca.

Tentei conversar francamente. Pedi que me explicasse o que sentia e suas palavras literalmente foram: - Eu não agüento mais ficar aqui enquanto a vida está passando. Eu quero fazer um montão coisas. Nada acontece de legal e diferente na minha vida.

Fiquei perplexa sem saber o que dizer e sem compreender direito o que é esse “montão de coisas” que ela quer fazer.

Fingi que sabia e tentei explicar que me sinto assim às vezes, ao que ela contra argumentou que sou adulta e livre. - Mãe, você pode fazer tudo o que quiser! Você pode pegar um avião e ir aonde desejar. O que sabe ela sobre liberdade?

Eu ignorei essa alegação despropositada e retornei ao assunto dos seus sentimentos, Expliquei que além dela e de mim, muita gente se sente assim, e que (apesar de desencorajador), essa sensação não passa com o tempo. É preciso aprender a lidar com isso.

Discorri que momentos de grande alegria são especiais e, portanto raros, assim como os de grandes tristezas, e que a estabilidade da rotina não é assim tão ruim. Ao menos significa que está tudo bem, tudo caminhando como deveria.

Ela ficou decepcionada, obviamente. Sua expectativa era de que a vida fosse uma festa eterna e cheia de alegria, onde não existem deveres, só e apenas prazeres. Quem de nós não gostaria?

Ela disse que queria fugir para a Escócia. - A Escócia é bem longe daqui, justificou.

Essa resposta me fez pensar em mim e no pouco que aprendi nessa minha vida, mas lhe disse com convicção que ninguém consegue fugir de si mesmo. Ela poderia ir para onde quisesse, mas só se sentira bem se descobrisse a “Escócia” dentro de si.

Isso arrancou dela uma imensa gargalhada, o que inesperadamente dissipou sua angústia. - Mãe você devia escrever um livro com esse nome: “Encontre sua Escócia dentro de você!”.

Mais alentada, aproveitei para dizer que sua “Escócia” tem muitos outros nomes e que muitos sonham com um lugar de ser feliz.

Falei de Utopia, Shangri-Lá e claro, de Pasárgada. Fiz questão de ler o poema para ela.

Não sei se ela compreendeu tudo. Perguntou-me o que eram “alcalóides”. Parece que o resto ela já sabia, e no mais, se surpreendeu ao perceber que até Manoel Bandeira queria um refúgio feliz. Intuiu ao menos que não está sozinha em sua aflição.

Em sua meninice espaventada, já saiu tagarelando e cantarolando feliz, como se nada tivesse acontecido. Toda sua “crise existencial” se foi assim num estalar de dedos, enquanto eu fiquei ali pensativa e melancólica.

Como é difícil proteger-se da dor de viver.
.

18 comentários:

Caio Fern disse...

eu entendo bem a sua filha . apesar de eu ser muito mais velho que ela . acho que a minha geraçao em Sao Paulo se aproxima mais das agustias dela .

exellente post .
abraços .
Caio .

Anônimo disse...

Gostei muito de ver esse seu texto intimista aqui, Ross.

Pelo jeito, está começando a surgir a poetisa em sua filha. Esses questionamentos dela, as respostas prontas em formato de melancolia, como quem fica um dia inteiro a indagar o universo... sei não... hehe... Ao mesmo tempo que nos aflige querer proteger quem amamos, é uma graça ver isso, né?
Fiquei a imaginar a carinha dela a devanear. Ela tem seus olhos? Se tiver, aí sim deverá carregar muitas coisas neles.

Beijo, querida! E um beijo especial para a sua pequena mulher.

Henrique Pimenta disse...

Há mundo que não se acaba - nem na Escócia.

Batom e poesias disse...

Que bom que entende Caio, e que bom que gostou.
Feliz por vir.
bjs

Batom e poesias disse...

Ai ai, Larinha. Acho que tem razão.
Ela tem a angústias dos artistas...
Ela é pouco parecida comigo
Seus olhos são escuros e muito expressivos.
E tem a lingua afiada e raciocínio muito rápido para mim...hehehe

Adoro quando vc vem aqui.
Sensibilidade incomparável

beijoca

Batom e poesias disse...

E o mundo dos poemas é o melhor de todos, Henrique.
E nesse, você é amigo do Rei.
Quem sabe o próprio?

beijos

Jorge Stark (Miltextos) disse...

Prosa e poesia no mesmo planeta... Sempre belas.

Unknown disse...

Como é bom esse tempo, Ross!

Tempo de explicar o mundo e verificar o quanto o mundo mudou. Sua filha já sonha como você. Certamente será do campo das Artes.

Aproveite! Tempos virão em que com muita sorte, ela fará você pensar que a ouve e só.

Agora é a vez dela. Que seja muito feliz a doce Filha que você tem.

Beijos

Mirse

MariaIvone disse...

Não conhecia, fui ler o poema de Manuel Bandeira e achei lindo. Nada mais adequado à situação que relatou.

A Escócia, porque bem longe, é a Pasárgada de sua filhota, é para lá que ela quer ir quando não está feliz. Aprender que não precisa de avião para fazer essa viagem é que bem mais complicado.

A.S. disse...

Rossana...

Todas as questões colocadas pela tua filha são pertinentes. Refletem o seu estado de descoberta e amadurecimento! Ora isso é bem sintomático quanto ao trajecto de vida que ela pretende Só tens que apoiar, naturalmente alertando para os riscos duma sociedade em rápida transformação!
Deves sentir-te orgulhosa por teres uma menina que começa a sentir a responsabilidade de traçar o seu próprio caminho!!!
Sabes... o sonho e a rebeldia, são o mais claro sinal de inteligência!!!

Um beijOOO
AL

Batom e poesias disse...

Jorge
Mil palavras, mil textos, mil Rossanas.

bjs

Batom e poesias disse...

Mirse, querida
Nos resta fazer a nossa parte como mães.
O que eles serão, quem pode saber?
Espero que felizes...

beijo

Batom e poesias disse...

Contagotas,
Adorei seu poema "as vezes".

Que bom que conheceu "Pasárgada" através de mim. Manoel Bandeira é fantástico.

bj

Batom e poesias disse...

Oi Albino,
Fico orgulhosa sim, e também assustada com os novos tempos.
Fico feliz quando passa por aqui.
bjs

Wania disse...

Rossana

A inquietude nos move... mas no nosso tempo viver era menos perigoso, mas não menos dolorido! Educar não é fácil, mas quando se diz o que se vive, fica mais fácil de convencê-los por si só. O bom é que aos 12 anos as crises existenciais duram segundos...rsrs!

Tua florzinha já pensa em jardins maiores para florir... crescendo rápido e isso sempre é bom. Que os Anjinhos iluminem e protejam os seus caminhos!

Lindo texto/vivência, Amiga!
Com a mãe que tem... a Escócia dela esta bem perto!

Bjsssssssssss

Mirian Lamy disse...

Posso imaginar a conversa dessas artistas, mãe e filha...

mil beijos

Batom e poesias disse...

Doutora Wania,
Eu te amo!
bjs

Batom e poesias disse...

Miriam,
Você bem sabe...

bj